Heiligendamm - Completo



Reunindo com os G8.
Heiligendamm. Um ATL para jovens revolucionários.

A rodagem foi pouco surpreendente, mas interessante. Por motivos que para aqui não são chamados estive pouco envolvida no que estava a ser a rodagem de “Global Pirates”, tendo concentrado o meu interesse principalmente em tudo o resto que se estava a passar.


Partimos de Berlim a 1 de Junho e pelo caminho vimos logo sinais do nosso destino. Afluência policial fora do normal na auto-estrada e até nos campos em volta, (provavelmente em busca de pontos estratégicos). À chegada a Rostock fomos mandados parar pela polícia e obrigados a estacionar o carro num parque onde estavam 3 carrinhas policiais e, mais ou menos, 20 agentes. Pediram os documentos, viram a bagageira, tudo rápido e eficiente devido ao facto de termos um Press Card. Estavam todos de uniforme verde-tropa, com as suas armas e os seus cabelos louros. Um deles, no caso concreto uma mulher-polícia, estendia-se na relva a apanhar sol. Mas nunca a sorrir. Polícia não pode sorrir.
Ao chegar ao acampamento pensei estar num festival de verão. Jovens por todo o lado, tendas e mais tendas. Contudo, depressa realizei que não era bem assim quando os operacionais “anti-órgãos de informação” evidenciaram os seus métodos, complexos e quase hostis, de bloqueio ao acampamento. Mantiveram-nos quase uma hora à espera e obrigaram-nos a repetir indefinidamente o que estávamos lá a fazer e quem éramos a diferentes interlocutores. Bem mais complicados que a polícia.

Desta porta principal do acampamento fomos mandados, porque tínhamos de entrar com a carrinha, para um portão alternativo que estava a ser “defendido” por 1 rapariga e por um rapaz, ambos vestidos de um negro identificador. O rapaz pouco falava, limitava-se a olhar, ligeiramente desconfiado, e a rapariga gostava, claramente, de mostrar a sua autoridade. Falava alemão, do qual só consigo perceber metade, a toda a velocidade e volume, tinha voz rouca e masculina. Não era preciso perceber o que ela dizia para a achar insuportável.
A espera à beira da estrada foi longa. Chegavam cada vez mais pessoas. Um grupo passou, vindo da cidade, provavelmente, trazendo couve-flor e cenouras. Sobrevivência vegan.
Montámos as tendas. Pouco depois a primeira surpresa. Durante um pequeno teste de material fomos despertos, ou, mais exactamente, atacados, por 1 grupo de 20 franceses que se batiam contra a presença das nossas câmaras. Davam murros na carrinha, discutiam e gritavam: ”We don’t give a fuck about your stupid movie! We don’t want cameras in here”.
Eram maioritariamente rapazes, mas também raparigas; uma verdadeira mancha negra ao lado da nossa reluzente e branca carrinha. Laurent, o realizador, parecia um alce rodeado por lobos, diminuído entre tanta agressividade. Conseguiam entender-se bem, pois partilhavam a mesma língua materna. E Laurent tentava explicar que estavam todos do mesmo lado, que era a mesma luta. Mas as respostas continuaram violentas. Os olhos e linguagem corporal daqueles jovens rapazes e raparigas intimidavam qualquer um. Estava escrito no olhar que se não fizéssemos a bem o que eles queriam seria a mal que o iríamos fazer.
Daquela escuridão destacava-se um jovem negro, irado, provavelmente vindo de uma qualquer família senegalesa, a viver nos banlieues de uma qualquer cidade francesa. De acordo com um colega da equipa de filmagem – francês – a explicação era simples e óbvia: ”Eles são assim por causa da intolerância do Sarkozy!”

A carrinha saiu passados uns minutos. Na manhã seguinte foi a nossa vez. Estávamos, com certeza, no local errado do campo. O ambiente que se vivia não era, definitivamente, pacífico. A tensão já estava criada e os comportamentos justificados. Agora era esperar para ver o que Sarkozy os ia obrigar a fazer.

A organização do acampamento baseava-se – naquela amálgama de movimentos, associações e organizações presentes – num pressuposto de generosa igualdade e na reciprocidade do dar e do receber. Não havia, teoricamente, hierarquia entre as pessoas, ou sequer entre organizadores e/ou organizações. Quem queria ajudava a lavar a loiça, a cortar legumes ou o mais que fosse. E às refeições era possível, para quem o quisesse, contribuir para a compra de alimentos.
O resultado desta tão magnânima prática verificou-se no 3º dia, quando já só havia comida para metade dos comensais… Depender da boa-vontade dos outros nunca é uma surpresa agradável; E em Heiligendamm não houve milagres que multiplicassem os pães.
O que havia provinha de grandes panelas, com voluntários a servirem porções razoáveis de iguarias vegan em pratos de metal. As bebidas resumiam-se a chá e a café. No recipiente de um dos chás podia ler-se: “Black tea - Hardcore tea for hardcore people”. As mesas eram de madeira e corridas, por entre a relva e a lama. Toda a gente em comunidade. Uma espécie de campo de concentração por um mundo melhor.

Em diferentes tendas comunitárias, durante a noite, tocavam dj´s e, por vezes, bandas, barulhentas, muito barulhentas. E doía-me o coração quando ouvia alguém dizer: “A música ontem estava boa!”. E destaque-se o acampamento dos hedonistas, por ser o que proporcionava a maior parte das actividades de lazer, incluindo um curso de “Como melhor mandar pedras ao charco”.
Algures também projectavam filmes. Filmes de intervenção. Não entendo como, mas sei que eles nunca se cansavam de intervir, ou de ver os outros intervir.
Durante o dia, e um pouco por todo o lado, decorriam plenários e workshops onde se debatiam os mais importantes assuntos, desde a salvação do planeta até ao ensino de técnicas estratégicas para que os futuros manifestantes se protejam da polícia durante os bloqueios.
Todos assistiam a estes “direct action trainings” e a imagem mais comum era a de jovens casais enamorados e ternamente abraçados, com o rapaz a confortar carinhosamente a frágil rapariga, a qual, a maior parte das vezes, mal parecia saber onde se estava a meter.
E tudo isto era a minha Heiligendamm: um enorme ATL (actividades nos tempos livres) para jovens revolucionários.
Ademais, performers passeavam-se por entre as tendas, vestidos de bruxas e de monstros, batendo com um pau num pedaço de madeira. E gemiam cânticos. Até que um belo labrador, de cor negra, alerta e consciente do perigo destes estranhos seres que por ali andavam, se fez a eles. Desafiou-os, ladrou-lhes, correu à sua volta…e nem assim se calaram.

Dia 2 era o dia da grande manifestação pacífica em Rostock. Tal como combinado, para a produção do filme, encontrámo-nos com um membro da Attac, Pedram, o seu membro mais mediático. Pedram é de ascendência Iraniana e preparava a partida para a manifestação. Com ele estava parte da família: pai, primos e tios.
Andei à beira da estrada a escutar sons estranhos para mim: alemão e iraniano. Pelo caminho, a quantidade de pessoas aumentava a cada minuto. A partida oficial da manifestação era da principal estação de comboios da cidade, onde estava um palco e actuavam músicos. Quando cheguei tocava um norte-americano (cujo nome me escapou) e que cantava à la Pete Seeger (à falta de comparação menor) canções de intervenção. Fez-se seguir por uma brasileira pertencente a um movimento que se chama “Via Campesina”, que não foi cantar, mas ler um texto (de intervenção, claro) e toda a gente aplaudiu as críticas ao sistema capitalista e neoliberal, etc..
A assistir ao que se passava em palco, enquanto se esperava o arranque da manifestação, podia ver-se todo o tipo de pessoas. Num extremo etário, sexagenários que não esqueceram o espírito dos anos 60 – e que o reavivavam adereçados nas suas gabardinas amarelas e azuis, protegendo-se do frio e da chuva que começava a espreitar – empunhando os seus cartazes combativos. Na outra extremidade, os mais jovens, dormindo no chão e tentando balançar o divertimento da noite anterior com a responsabilidade do dia de hoje.

Passadas umas horas, a aglomeração já era enorme e os grupos começavam a organizar--se para o “desfile”. Havia várias carrinhas de diversas organizações. Enquanto andava às voltas passavam por mim grupos com andar decidido, óculos escuros e pretos, agressividade em cada passo e muita determinação no caminho a tomar. Não interessava quem estivesse á frente.
A manifestação começou e eu, que estava numa fila interminável para comprar comida para a equipa, fiquei para trás. Quando tentei avizinhar-me do meu grupo já era tarde. Andava a passo rápido, mas nenhum sinal da carrinha da Attac, onde tinha que chegar.
A cada 100m vi atitudes diferentes. Hippies dançantes e coloridos, antifascistas negros e intimidantes (mas, quase todos, inofensivos), o clown army a interagir com os agentes policiais, os banais caminhantes e os voyeurs.
A dado ponto a polícia começou a parar a manifestação e a bloquear ruas. Comecei a calcular que a chegada ao meu destino seria difícil. Estava assustada, tudo aquilo era desconhecido, poderoso e estranho para mim.
Quando cheguei a uma rua longa… comecei a ver vidros partidos. Entrei numa loja para tentar telefonar à minha equipa e para contar os sinais de violência e a razão do meu atraso. Os donos da loja, tipicamente alemães, sorriram ao ouvir o meu preocupado telefonema. Continuei o caminho.
Precisava de passar pelo meio da manifestação, onde já podia ver grupos de homens/rapazes vestidos de preto dos pés á cabeça, trocando olhares cúmplices e colocando-se estrategicamente em ruas paralelas, fazendo-se seguir de ruídos estrondosos de foguetes, garrafas, pedras…o que fosse.
Para a maior parte, o início da violência na manifestação foi repentino. Quanto a mim, por estar sozinha, estava alerta para todos os pormenores e assisti à discreta organização dos grupos violentos. Eles sabiam exactamente o que iam fazer e não falharam. Andavam negros, sempre negros. Negro a cobrir a cabeça, a cara e as mãos. Estavam em cima de paragens de autocarros, no meio da multidão. E eu ali, apenas a poder observar, sem bateria no telemóvel, a ser ajudada por uma família alemã que estava na manifestação com crianças. Pedi ajuda – não tinha opção – a quem era colorido. Precisava de telefonar à minha equipa e de explicar a impossibilidade de continuar a tentar alcançá-los. Então, fomos interrompidos por ensurdecedores barulhos e por multidões assustadas que fugiam. Uma rapariga gritava para o namorado, em fúria e frustração: “Aqueles gajos de preto! São aqueles gajos de preto!”
Corríamos, nós e mais centenas de pessoas, pelas ruas acima a tentar fugir de todo o caos que se estava ali a criar.
Não consegui telefonar, mas decidi voltar para trás, em direcção à estação. Agradeci e despedi-me de quem me ajudou nos primeiros momentos de pânico. Só me disseram que tinham de sair dali com as crianças e “Stay away from the people in black!”. Vi-os a afastar-se. Uma mulher jovem levava o bebé enrolado na sua barriga com um pano de cores quentes.
Estava sozinha outra vez, só via pessoas a fugir, e os barulhos da pequena guerrilha continuavam. Olhei em volta e descobri o meu próximo alvo. Um casal muito jovem, com mochilas e sacos-cama. Calculei que fossem para o acampamento, precisava de ajuda para voltar. Fomos os três pelas ruas desertas de Rostock até à estação e, pelo caminho, no sentido contrário, só víamos carros de polícia, canhões de água e sirenes.
Os olhos de 18 anos dos meus dois novos amigos brilhavam de excitação com tudo o que estavam a ver. Eles iam para um acampamento diferente do meu, onde estava uma maior presença do chamado blackblock/antifas. Tentei dizer-lhes da probabilidade de um maior controlo policial nesse acampamento. Por essa razão, e por ser mais perto de Heiligendamm. Não se interessaram. Quanto muito era fundamento para mais motivação. Vinham de uma pequena aldeia no centro da Alemanha. Tudo aquilo era novo para eles.

A chegada ao acampamento foi calma. Estava silêncio absoluto e não se via ninguém. Pelos caminhos lamacentos cheguei à minha tenda, azul, no meio de outras centenas, coloridas. Deixei um recado no sapato do Laurent, que dormia na sua tenda. Protegi-me e acalmei a adrenalina de um dia agitado dentro do meu pequeno igloo.

Nos dias seguintes a tensão começou a crescer em todo o lado. Acordámos com as fotografias violentas nas capas dos jornais, com o som dos helicópteros a sobrevoarem o acampamento, com a sensação de que todos éramos perigosos e ameaçadores. O negro, sempre presente, tinha tomado a consciência de todos. Estávamos todos de negro.

A Attac promovera durante meses as manifestações em debates televisivos, jornais, rádio e defendeu os manifestantes, contrariando a imagem violenta vulgarmente transmitida sobre eles. Agora estava determinada a afastar-se do tipo de acções violentas que aconteceram e a não participar no grande bloqueio do dia da cimeira. Conflitos dentro dos grupos de manifestantes já estavam a acontecer. Mesmo dentro dos grupos pacíficos, as diferenças ideológicas, e de acção, eram tão grandes que tal se apresentava inevitável.
Testemunhei uma decepção enorme. Todos queriam bloquear, pelo simbolismo do acto, mas via-se, pelas reacções em plenário a que assisti, que, no fundo, para a maioria dos manifestantes, a adrenalina de se estar a fazer alguma coisa poderosa é verdadeiramente mais importante do que tudo o resto.
Querem a revolução, e por momentos até se falou da nossa revolução, da Portuguesa. O povo junto, venceu, com cravos. Alguém disse que se olhássemos para Portugal víamos que era possível, se formos um só. Mas a hipótese de uma grande frente comum estava minada. E iniciou-se um jogo de argumentos forjados contra quem queria fazer acções que tivessem um verdadeiro e positivo impacto na opinião pública. A acusação demolidora chegou: desistir de um bloqueio em conjunto com manifestantes violentos (que não seria possível controlar) era uma aliança com os media manipuladores.
Eu não conheci uma única pessoa naquele acampamento que apoiasse uma acção política e supostamente pouco “revolucionária”, e que pudesse, no futuro, ter um impacto mais consequente. Venceu a adrenalina, perderam as ideias.
Suponho que, realmente, aquele não fosse um espaço de reflexão. Onde todos se juntavam e mostravam a razão da sua luta, seja lá o que isto queira dizer. Era um lugar de acção, seja lá o que isto queira dizer.
Eu vi e ouvi muitas lutas diferentes e ainda mais razões pelas quais ali estar. Mas o que mais se sente e o que mais move todos os que ali estão é o sentimento de culpa por se ter nascido em países ricos, e o mal-estar pela contradição de utilizar bens de necessidade não necessários e que se tornaram quase imprescindíveis. “Não preciso de químicos para preservar alimentos”, “Não preciso de banho todos os dias”, “Não preciso de telemóvel”, “Não preciso de roupa”, “Não preciso…”, “Não preciso…”, “Não preciso…”
No fim… todos nascemos aqui (ocidente), todos precisamos e todos usamos. Serão privilégios, mas talvez a melhor maneira de mudar as coisas seja aceitar o que somos, como somos, o que precisamos, e mudar a partir daí. A regressão não é resposta para nada, não precisamos de voltar ao passado quando estamos a pensar no futuro.

A repressão policial (permanente vigia de helicópteros sobre o acampamento onde estavam manifestantes maioritariamente pacíficos, que organizavam protestos criativos, workshops, etc.) criou o medo de um possível ataque e esvaziamento do acampamento pela polícia. Por isso, aconselhada pelos meus superiores, tive que abandonar Rostock antes do dia da cimeira. Para trás deixei o negro e a adrenalina. Nem sombra de luz, nem réstia de ideias.

De tudo isto eu gostava de ter tirado fotografias. Mas já me tinham alertado para a desconfiança, o medo de perder a cara, de a estar vender, mesmo pela causa. Principalmente dentro dos grupos mais radicais, e negros. Os mais pacifistas partilham esse pudor da imagem mas também têm argumentos ecológicos. Aparentemente a produção de certos e determinados produtos electrónicos estão a criar o desaparecimento de uma planta (da qual não me recordo do nome) na América do Sul.
Assim, eu estava cercada, de um lado os de negro, do outro os outros, em lados diferentes, mas do mesmo lado, e eu sem estar num ou noutro. Sem provas, pelo menos fotográficas.

De novo em Berlim, noto que até agora nada de especial aconteceu por lá. Queria ter voltado mais surpreendida e mais esclarecida. Ainda não foi desta.

1 comment:

Anonymous said...

Gostei moito da súa crónica! Era case como si eu puidese estar lá tamén... e case seguro me sentiría como voçé... "Venceu a adrenalina, perderam as ideias."